terça-feira, 26 de agosto de 2014

POEIRA

                    A mulher passa o dedo sobre o piano fechado e mudo. A grossa poeira gruda em seu dedo indicador, há na poeira o indício do tempo, há no seu dedo fragmentos de passado. Com um pano limpo resolve retirar o tempo ali depositado em forma de fungos, bactérias e vestígios mortos. A música já não se ouve mais. Passa várias vezes o pano seco. Decide molhar com algo. Sem compasso. Lembra-se do óleo de peroba e volta a dar um brilho no tampo. Lustra. Acha que ficou embaçado e retoca com a flanela. Abre a tampa e vê as teclas amareladas, nada pode se fazer contra o amarelado da saudade.
          O piano continua em silêncio e a mulher também.

sábado, 16 de agosto de 2014

POR...VIR

                        Tenho visto pouca coisa, tenho escutado tão pouco, só tenho sentido o cheiro das fumaças dos carros, porque não tenho tido tempo de fechar os vidros, pois só há tempo para deixar que o dia termine e que venha logo o outro e tenho visto pouca gente, tenho escutado pouquíssima música e tenho achado pouca ou nenhuma graça nesse estado de deixar o tempo passar grosseiramente em minha vida, e acabo respirando o nada e minhas roseiras brotaram repentinamente e não estava a vê-las, e não tem nenhuma graça nesse arrastar-se pelos dias vãos, porque tenho o trabalho de trabalhar dia a dia, e só tenho comido as porcarias porque são as mais rápidas para se comer e fechei o livro porque a leitura estava arrastada e vazia, ou porque não era o tempo de ler nada, apenas é tempo e hora de vestir-se e levantar-se e deixar que o dia me leve o bom humor de ontem, amanhã é dia de descanso, há no fim de semana algo de metafísico e alguma coisa que não se pode se defender, há nos dias de descanso algo de mórbido, ou de mistério, há que se renovar para os dias que virão, que coisa, que coisa, tudo está porvir.

REGISTRO GERAL

Uma foto um número outro número uma mãe sem pai não declarado assinado com dedo de tinta. Agora é cidadão para valer!