quinta-feira, 31 de março de 2011

terça-feira, 29 de março de 2011

A ESPERA DA PERSONAGEM - PARTE XIX

        Embebidos em uma conversa-descoberta, ambos não viram o tempo correr. Maria Amélia respondeu a uma enquete proferida por Gomes, num bate-rebate inescapável. Do time preferido, aos gostos musicais, enumeravam as afinidades, que não eram poucas. Gomes evitou falar na viúva, mãe de sua única filha, e Amélia sentiu uma ponta de dor ao pensar que nunca seria mãe.
– Por que não gosta de Aristeu?
– Não sei dizer, acho que não gosto da ideia de seres mitológicos, talvez um bíblico seria melhor, Paulo ou João.
– Minha vó escolheu meu nome e disse que era de princesa. De fato houve uma aqui no Brasil, dizia que tínhamos descendentes na realeza, pois meu sobrenome é parecido, mas acho que era mentira da vovó.
– Vamos jantar juntos?
– Quando?
– Hoje, no meu apartamento.
– Não sei.
– No seu, então.
– Pode ser no seu, não saberia como recebê-lo.
– Tenho certeza como vou receber você!
         O garoto sussurrava no ouvido da mocinha que resgatava os pães...
– Ele convidou ela, eu ouvi.
– Jura, vai lá ouvir o resto, ela aceitou?
– Velhinho safado esse seu Gomes, "mó" cantada na tia.
– E tem idade pra namorar...
         Lá do caixa o Portuga gritou para os dois pararem de balelas e fazerem o serviço, que tinha gente esperando. No balcão Maria Amélia segurava o papelzinho com o endereço de Aristeu e toda a insegurança do mundo.

segunda-feira, 28 de março de 2011

A ESPERA DA PERSONAGEM - PARTE XVIII

         Senti tanto dó de Maria Amélia que resolvi caprichar mais nessa história dela. Afinal de contas era só mais uma personagem, tão comum que chegava a dar pena. Nas classificações, um enredo chapado e sem grandes conflitos. Pensei que mesmo que não me rendesse uma publicação ou ainda indicações com cinco estrelas nas resenhas de jornais e revistas, sim, eu daria uma vida literária digna para Amélia.
         Queria dizer a ela que não sentisse mais medo, nem angústias, pois faria de tudo para que seu romance transcorresse na mais perfeita normalidade. Mas algo estranho havia acontecido, tentei buscá-la e não vinha. Não aparecia minha criação. Fiquei confusa por alguns minutos e senti uma aflição por achar que tinha sumido de mim.
         Tinha me afeiçoado á ela, gostava dela. Da sua falta de glamour, das suas maledicências, da vida sem rumo que eu criara para ela e de como transitava em meus pensamentos e alterava meu estado de espírito. Escrever sua narrativa havia me transportado para um universo desconhecido, o da simplicidade.
         Simplicidade de ações e palavras, de enredo e construção, nossa sinergia era agora clara e necessária. Assim como o pão com a manteiga - de preferência na chapa-, o dia e a noite, o Gomes e a Maria Amélia. Diria: Cara personagem agora amiga, não sei que rumo traçarei para sua história de amor, tão desejada e sonhada por você, minha Maria. Saiba que esta escritora abdicou da complexidade das suas intenções primárias para que vivesse esse intenso romance. E irá vivê-lo, isso eu garanto!
         Iniciava-se nos segredos das próximas páginas o meu artífice mais comum, banal, precário, desmedido, contraditório e quer saber, nem me importo mais com nada disso. Vou relatar cada linha, ponto e parágrafo de Maria Amélia Canto e Melo e Aristeu Gomes, porque agora sou eu quem quer viver essa história.


domingo, 27 de março de 2011

A ESPERA DA PERSONAGEM - PARTE XVII

  – Corre seu Portuga pra ver, eles estão de mãos dadas.
– Sai daí garoto, olha a compostura.
– Que nada, quero ver o beijo.
– Não vai ter beijo, sai já, vai para o balcão atender.
– Como o senhor sabe? Nem selinho?
– Ah! Moleque, entra agora...
Entraram na padaria sem as mãos dadas, já que Maria Amélia num gesto reprimido contraiu os dedos em torno da bolsa apertando-os fortemente. Gomes era mais feliz e tranquilo -os homens em geral são mais felizes e tranquilos- tocou levemente nas costas dela até que se sentassem no balcão.
         O garoto parado na frente deles tinha na cara espinhenta um sorriso curioso.
– Está feliz, rapaz? Traz para gente o de sempre.
– É pra já e no capricho.
– Por favor. Não quero sofrer.
– Não farei você sofrer, Maria, nunca. Por que diz isso?
– Não é de você que eu tenho medo. É de outra coisa, de alguém que não conhece.
– De quem? Como assim? Outra pessoa? Do que está falando?
– Você não acreditaria se eu contasse.
– Outro homem?
– Não. Claro que não. Deixa para lá...
         O garoto trouxe o pedido e levou uma ralhada daquelas do Portuga, porque veio cantando lá de dentro: Pão na chapa quentinho para os dois pombinhos. Porém, não teve importância, já que não ouviram nada, estavam imersos em si mesmos, descobrindo o que cada um era, o que cada um queria de si e do outro; em meio aos medos, incertezas e felicidades.

sábado, 26 de março de 2011

A ESPERA DA PERSONAGEM - PARTE XVI

Na manhã seguinte Amélia levantou-se e sentiu uma vontade infinita de trazer o tempo de volta. Resmungava consigo, lamentava sua falta de respeito, responsabilidade e culpa. Sim, a culpa e o arrependimento eram corrosivos. Imaginou Gomes no balcão e sentiu um medo maior ainda de perder o único fiozinho de felicidade que a vida lhe propusera. Cuspiu a pasta de dentes com raiva tamanha que respingaram no espelho. Não quis olhar para aquela mulher covarde.
Na manhã seguinte Gomes levantou-se e sentiu uma vontade infinita de ver Maria Amélia. Não entendia o motivo real dessa obsessão. Gostava tanto daqueles olhos tristes e apagados. Talvez o desejo de vê-los acesos e vivazes fosse o intento. Seu jeito intemerato, contido, controlado deixava-o mais curioso e envolvido. Espalhou espuma de barbear no rosto mal dormido e jogou fora a barba passada. Queria olhar aquela mulher novamente.
Arrumaram-se e decididos saíram pela manhã chuvosa da capital paulista rumo a padaria Fiães. Os passos, de ambos, eram decididos e firmes, urgentes, medrosos, confusos. Iam rápidos e de repente desaceleravam. Maria por um instante parou. Pensou em voltar, desistiu, voltou no prumo certo. Gomes diminuiu o compasso, refletiu ás avessas, e assegurou-se que o rio corre para o mar. Foram.
Viram-se frente a frente alguns passos antes da porta da padaria. O garoto entrou padaria adentro gritando: “Seu Portuga o casal tá vindo, deram um com a cara do outro”. Maria Amélia não conseguiu disfarçar o contentamento e sorriu, tão profundamente, que sentiu o corpo mole e desajeitado. Gomes apertou o passo e sorrindo- queria ver aquela mulher novamente- esticou as mãos que alcançaram as dela, num movimento delineado no espaço, formando um desenho único e mágico, que só o amor consegue emoldurar.

quinta-feira, 24 de março de 2011

A ESPERA DA PERSONAGEM - PARTE XV


Gomes caminhou pensativo e magoado. Nesses últimos meses em que havia observado a rotina de Maria Amélia havia feito uma leitura equivocada, talvez. A ideia do bilhete no saco de pão agora parecia infantil e piegas. Envergonhou-se. Tentou lembrar-se de sua arrogância ao ser direto e dizer que gostava dela. Provavelmente tinha ido rápido demais e Maria tinha razão ao dizer “Você nem me conhece”.
Maria tentou levantar da cama e não conseguiu. Olhou as coisas espalhadas, roupas, sapatos, colares e sentiu-se desvairada. Imaginou o que estaria sentindo Gomes com sua ausência, mais, imaginou que ele pudesse não ter ido. Sim, de fato ele não foi. Tentou lembrar-se da sua arrogância ao dizer “vamos”. Ele deve ter achado que era uma mulher barata, volúvel. Fez bem em não ter ido.
Gomes parou diante do prédio e lembrou que não sabia o andar. Prédio antigo, sem porteiro, como faria. Irritou-se; o que estava fazendo ao insistir em uma história que certamente não daria certo. Maria levantou da cama e pensou abrir a janela, desistiu. Arrastando os pés foi para o banheiro.
Esticava a cabeça para todas as janelas, ás vezes o reflexo batia e não era possível ver nada. Uma moça saiu com seu cachorro. Não conhecia nenhuma senhora com esse nome. Agora era melhor desistir; na sua idade passar o dia na porta de alguém parecia doentio e desnecessário. Caminhou lentamente, como se quisesse dar uma chance ao acaso.
Maria parou diante da janela e começou a puxar as cortinas. Prendeu uma de um lado, em movimentos calmos e repetitivos. Pensou na hipótese maluca de abrir a janela e ver Gomes lá em baixo, cobrando sua ausência. Ficou com medo, mas abriu mesmo assim e o Sol cegou seus olhos. Piscou algumas vezes antes de olhar para a rua que movimentada, trazia diversas pessoas, menos quem ela gostaria que estivesse.

quarta-feira, 23 de março de 2011

A ESPERA DA PERSONAGEM - PARTE XIV


Estava produzindo outro capítulo sobre a reação de Gomes com a ausência de Maria Amélia, quando ela me interrompeu novamente.
  – Já chega.
– Como assim?
– Você ganhou; não quero mais que escreva minha história.
– Enlouqueceu? Agora que acertei a pena ao papel?
– Está bom por aí. Não quero que continue e pronto!
– Veio me suplicar para que fizesse alguns capítulos, que isso e aquilo, que exigia seu enredo precário, que não faria interrupções...
– Não quero sentir tudo aquilo. Estava bom antes, estou confusa, não sei o que vai sair da minha boca, você está mudando meu jeito de ser.
– E isso não é ótimo? Agora sou eu que não paro. Escrevo o que desejo. Você disse que faria o que fosse preciso para ser protagonista. Se entregue a isso.
– Por favor. Não quero sofrer.
– Vou até o fim desse enredo, volte para história. As coisas serão como eu quiser agora. Você é minha personagem.
– Você é cruel.
– Cruel, chinfrim, boi-com-abóbora, que escrevo mal, já sei Amélia. Foi você que pediu para viver. E o enredo é básico, não precisa ter medo. Terá que viver todas as partes e eu sinto muito.
– Não sou viva, sou personagem. Estou confusa.
– Agora é tarde, quero escrever mais Maria Amélia; Gomes é incrível, até o Portuga ganhará espaço como personagem secundária.
– Estou confusa.
– Vai piorar.


terça-feira, 22 de março de 2011

A ESPERA DA PERSONAGEM - PARTE XIII

Gomes estava já um pouco impaciente no balcão da padaria. Olhou várias vezes e perguntou ao Portuga se havia visto a senhora de ontem com quem havia tomado café.
– Dona Maria, não.
  – Portuga, que quer dizer Fiães? Venho aqui há tanto tempo e nunca perguntei.
– Minha terra natal. Nunca ouviu dizer.
– Desculpe-me Portuga, faltei nessa aula de geografia.
– Fiães ou Santa Maria da Feira. Tem um famoso rio. Rio-ás-avessas e recebe esse nome porque corre do poente para a nascente e deságua no rio Uima.
– Que lindo isso. Veio para cá ainda pequeno?
– Não, já era gajo formado. Apaixonei-me pela minha Maria.
– É, todos tem uma.
– E pelo visto queres a sua.
– Gostaria.
– Não veio sua Maria hoje?
– Até agora nada e acho que não virá. Assustei-a.
– Virá.
– Portuga, manda aquele café puro e quente e pão na chapa, que não vou esperar mais.
– Garoto, balcão.
         Maria Amélia não foi naquela manhã. Gomes tomou seu café em silêncio e pensou no poente que corre para a nascente, sua vida ás avessas. Uns que deságuam nos outros, e tudo o que corre para o mar.

segunda-feira, 21 de março de 2011

A ESPERA DA PERSONAGEM - PARTE XII

Parte XII

Dessa vez Maria Amélia subiu de elevador, precisava chegar rápido e o tempo antes, largo e moroso, agora era seu inimigo e passava aos pulos e solavancos. O apartamento silencioso como sempre agora estava mais vivo e sujo. As coisas pareciam fora do lugar e pela primeira vez não fez nenhuma questão em ajeitá-las.
No quarto deitou e pensou. Pensou em tudo que havia acontecido e teve um medo transtornado. Não gostaria de saber como os sentimentos confusos se organizariam daqui para adiante. Decidiu olhar suas roupas, sapatos, maquiagem e perfume. Seu lado mulher florescia novamente, as banalidades dos adornos, antes fúteis para ela, agora eram latentes e muito necessárias.
Diante do espelho verificou as rugas e alguns métodos para disfarces, encurtou duas saias e achou que suas pernas ainda podiam ser mostradas sob as meias finas. Abriu a caixa de joias e resgatou dois colares, um de pérolas e outro de cristais.
Simulou dois ou três desfiles de roupas, esfregou o rosto em uma máscara de mascavo com abacate. Pintou as unhas com várias cores de esmaltes e lembrou-se da menininha segredando algo para sua amiga-boneca-pelada. Sentiu falta de uma amiga. Lembrou por um instante de sua sobrevivência nesses anos todos, sem afeto, sem conversa, sem amiga. Não sentiu saudades. Em movimentos adolescentes definiu como se arrumaria para o encontro de amanhã.
Tudo isso consumiu o dia que engolido pela noite deixou Maria abismada com o horário. Não havia comido nada o dia todo, apenas o pão na chapa e a média com Gomes. E como havia sido suficiente. Preferiu dormir.
Não pensou mais em nada. Não quis ter mais pensamentos nenhum. Lembrou apenas da resposta que proferiu a Gomes, quando perguntada “vamos”. Ela iria. Agora, nessa altura da vida iria sim. Mesmo que fosse para ter medo, angústia, dúvidas e qualquer outro sentimento, pois se sentia viva, muito viva.

domingo, 20 de março de 2011

A ESPERA DA PERSONAGEM - PARTE XI

Maria Amélia sorriu como há tantos anos não o fazia. Quase riu. Gomes chateou-se, sabia que não deveria ter dito seu nome. Maria garantiu que não era isso, o nome era forte, mas o jeito com que disse o nome, a situação era engraçada. Gomes meio irritado acelerou o passo deixando-a para trás, parou na banca para pegar o jornal.
  – Desculpe-me pelo riso. Quase nunca dou risada; saiu espontâneo.
– Não deveria ter dito.
– Não é o nome, é a situação. Eu disse que estava confusa e você audacioso disse seu nome. Achei tão inusitado. Quebrou minha confusão.
– Por quê?
– Não sei dizer, achei engraçada sua tentativa de maior aproximação. Quando sabemos os nomes tudo é mais próximo.
– E o seu?
– O quê, nome? Você já sabe.
– Sobrenome.
– Canto e Melo, não menos ridículo que Aristeu. Feliz, agora?
– Justo, muito justo.
         Ambos riram timidamente.
– Já que é filho de Apolo e tem o dom da profecia, diga-me qual é o nosso destino?
– Ficar juntos para sempre.
– Chegamos. Moro aqui. Então...
– Podemos nos ver amanhã, passo aqui para apanhá-la cedo.
– Não, encontro você lá na Padaria Fiães...
         Os dois repetiram junto o jargão pronunciado pelo Portuga: ”Padaria Fiães aquela que produz os melhores pães”. Dessa vez riram mais largamente.

sábado, 19 de março de 2011

A ESPERA DA PERSONAGEM - PARTE X

Enquanto caminhavam pelo viaduto Santa Efigênia, Maria Amélia e Gomes trocavam um diálogo quase monossilábico. Para ela a sensação de ter que produzir diálogos era muito estranha, tanto tempo sozinha, e talvez para ele também.
– Sou viúvo.
– Imaginei.
A caminhada era meio sem rumo dos dois. Prestaram atenção na cena de uma garotinha que com as duas mãos juntinhas no ouvido inerte de sua boneca de plástico, pelada, contava um segredo, imaginem o que estaria revelando a pequena menina para sua amiga calada.
  – Qual seria o segredo?
– Da menininha?
– Tão pequena e já cheia de mistérios.
– Como você.
– Não sou misteriosa. Sou a mais comum das mulheres.
– Sabia que o misterioso bilhete no saco de pão a deixaria intrigada.
– Fiquei curiosa. Depois achei que era brincadeira.
– Não sabia como chegar. Sempre séria, enigmática e triste.
– Sei.
– Falei demais, não é?
– Afinal, o que você quer? Companhia? Alguém para fazer o café?
– Não, eu gosto de você.
– Nem me conhece.
– Quero conhecer algo de que já gosto e aprecio, mais a fundo.
– Estou confusa.
– Aristeu. Aristeu Gomes.

quinta-feira, 17 de março de 2011

A ESPERA DA PERSONAGEM - PARTE IX

 – Muito prazer.
– Maria Amélia é um lindo nome.
– Fiquei curiosa com o seu nome, Sr. Gomes. Ei, pode por um pouco mais de leite, está escurinho demais.
– Não ousaria. E a vergonha. Quem sabe um dia. Observo-a por meses.
– Garoto, o leite. Verdade? E por quê?
– Gosto de você.
– O senhor é bem direto.
– Na nossa idade devemos esperar mais o quê?
– Essa manteiga não é Aviação. Prove o seu pão.
– Já provei, e não quero saber do pão. Gostaria de...
– Ontem você disse que os pães daqui são ótimos e
– Olha Maria, gosto de você e quero conhecê-la melhor, estou sendo direto.
– Sr. Gomes, por favor, não sei ainda como lidar com isso, minha vida sempre passou muito devagar, não tive filhos, sou solteira e moro sozinha há quase dez anos desde que minha mãe morreu. Não tenho gatos, nem cachorro, mas tenho muitas manias. Portanto, vamos devagar.
– Irei, mas vamos?
– Vamos.
– Ei garoto, traz o leite logo aqui para a senhora. Portuga, essa manteiga da chapa não é Aviação...


quarta-feira, 16 de março de 2011

A ESPERA DA PERSONAGEM - PARTE VIII(Leia textos antigos)

Naquele domingo ensolarado não saí de casa. Estava confusa assim como havia ficado quando escrevi meu primeiro romance “A face azul”, travada nos destinos das personagens que criara, buscando lógica no enredo na tentativa de alinhavar o curso desintegrado da história. A literatura esbarra na metafísica das ciências exatas, no sentido de que está baseada nas mudanças dos corpos, nas realidades naturais, nas medições qualitativas, nos espaços reversíveis, a queda, o movimento, a estática e eu.
Pensei em conduzir apenas alguns capítulos mais e quem disse que conseguia imprimir ritmo á narrativa de Dona Maria Amélia e seu protagonismo quântico. Faltava-lhe definição, verossimilhança de atitudes, ação e reação. Para mim faltava um completo sistemas de forças atuantes que me conduzissem ao movimento. Ao movimento da escrita, da ação criativa.
Do ponto de vista da Física estava ligada á minha personagem de um modo cósmico, atraída gravitacionalmente em uma órbita circular, uma girando ao redor da outra. “A minha finitude dá forma e cor ao infinito, que é sem- forma e sem-cor. Eu não percebo a Infinita Realidade assim como ela é, mas assim como eu sou”. Loucura. Alguns capítulos mais...
Sopraram essas frases ao meu pé de ouvido, trazidas pelo Sr. Albert Einstein e tentei recriar minha infinita realidade, mesmo sem cores e formas, mas jogadas ao infinito, saídas sabe lá como, com que energias e densidades, porém infinitamente conduzidas ao acaso.
Sim só mais alguns capítulos!

segunda-feira, 14 de março de 2011

A ESPERA DA PERSONAGEM - PARTE VII (Acompanhe a história lendo os textos antigos)

Naquela madrugada reli Parmênides de Eléia, filósofo favorito, e lembrei-me do que dizia ao afirmar “que só podemos pensar sobre algo que permanece sempre idêntico a si mesmo e que o pensamento sobre as coisas são e não são, ora de um modo, ora de outro, contrárias a si mesmas e contraditórias”.
O doce que amarga; o dia em anoitecer; o sólido que vira líquido; a personagem que escreve. Eu havia perdido minha identidade para essa personagem. Era instrumento de sua linguagem ficcional, persuadida em suas próprias ideias e opiniões. A verdade em mim era a percepção da mentira e a avalanche de sentidos confusos, porém, reais, havia me embriagado por completo.
Nessa perspectiva não conseguia mais escrever. Nem uma linha sequer. Decidi ir até Maria Amélia expor o caso:
– Não escrevo mais.
– Como assim? Não pode parar agora.
– Claro que posso.
– Agora não. Acabei de conhecê-lo.
– Então, conheceu. Todos irão supor o óbvio. Que vocês se encontraram na padaria. Juntaram os pães, a manteiga e... Enredo precário e comum.
– Você não pode fazer isso comigo.
– Eu vou fazer.
– Por favor, eu lhe peço. Preciso viver essa história.
– Não diga isso. Não quero escrever essa balela, esse opúsculo chinfrim. Você até já usou esse termo.
– Não consegue, não é.
– O quê?
– Escrever. É isso. Você não escreve o comum, o cotidiano. O pão com manteiga.
– Escrevo o que eu quero.
– Então continue minha história. Não é justo.
– Não me fale em justiça. Atormenta-me, fala mal, escarafuncha meus sentidos e clama por justiça.
– Alguns capítulos. O suficiente.
– Não.
– Eu suplico, apenas, o necessário. Eu prometo não intervir mais.
– Promete?
– Juro.
– Somente o necessário...
“Só podemos pensar sobre aquilo que permanece sempre idêntico a si mesmo. Conhecer é alcançar o idêntico.”
Eu agora a conhecia e isso parecia imutável em minha vida.

domingo, 13 de março de 2011

A ESPERA DA PERSONAGEM - PARTE VI (Acompanhe a história lendo os textos antigos)

Acordou dez para as seis da manhã.  As olheiras arredondadas orbitavam os olhos castanhos-comuns de Amélia. Dormiu poucas horas nessa última noite. Resolveu banhar-se diferentemente. O tempo havia passado tão rápido. Secou os cabelos e arriscou uns papelotes junto ao secador. Soltou-os. Ficaram bons. Roseou os lábios bem de leve e sorriu. Vestiu a blusa branca e saiu.
Entrou na padaria sem hesitar rompendo o ambiente como um facho de luz branca. Olhou. Não estava. Decidiu. Sentou no balcão. Uma média e pão na chapa...
– Com manteiga Aviação, na chapa. Posso?
– Sim, sente-se. Resolvi...
– Já sei; tomar café aqui no balcão.  Sabe que gostei da ideia.
– Nunca havia feito.
– Também não. Sempre compro dois e levo. É que os pães daqui são ótimos.
– Eu sei, você disse isso ontem.
– Você está diferente. De ontem, dos outros dias, meses.
– Quer média também?
– Não; gosto puro.
– Posso perguntar algo?
– Claro.
– Como sabia da Aviação.
– Quando pedia ao Portuga uma latinha pequena ele respondia que Dona Maria havia levado a última. Concorrentes. É Maria?
– Maria Amélia.
– Gomes.
– Gomes?
– Sobrenome. Nome oficial muito feio.
– Muito prazer...

sábado, 12 de março de 2011

A ESPERA DA PERSONAGEM - PARTE V (Leia textos anteriores para acompanhar a história)

Na porta da padaria, Maria Amélia parou e fincou pés, olhando para todos os rostos que por lá estavam. Congelou a imagem de um por um, com ar circunstante, analisava-os. Não entrava, nem saía da beirada da entrada. Observou os dois homens, pão na chapa e média, engoliam café, atrasados, jovens, um pardo e baixo, outro branco de bigodes. Ainda na mesma fileira, um coitadinho na cachaça, ria fininho, um gole, resmungos, dois goles, tristeza.
         Deu um pequeno passo para enxergar a outra parte do balcão. Estava vazio. Fixou novos olhos aos atendentes. De sempre o garoto dos frios, cortava grosso não importava o pedido, ordens, talvez; ao lado a mocinha que resgatava os pães, mais obediente à freguesia. No caixa o velho português e atrás dele a mulher, menos velha, no tricô, ininterruptos.
         Quem? Ninguém. Pensou em falar com a mocinha dos pães sobre o saco-bilhete. Seria ridícula. Não. Sim. Sim, era o garoto, claro, brincadeira de moleque, chacota eterna. Lembrou-se da mortadela no lugar do presunto, reclamou, o velho português brigou, garoto com raiva, deu nisso... certamente.
         Virou as costas e foi embora.
– Sem pães hoje?
– O quê?
– Perguntei se a senhora não vai comprar seus pães hoje.
– De fato, não pensei nisso.
– Ah! Que pena.
– Como?
– É que os pães daqui são ótimos.
– Eu sei...
– Bom...
– Então...
– Então, com licença, tenho que comprar os meus dois pãezinhos e bem branquinhos. Até breve.

quinta-feira, 10 de março de 2011

A ESPERA DA PERSONAGEM - PARTE IV (Leia textos antigos para melhor entendimento)

Na manhã seguinte percebeu o corpo dolorido por ter dormido no sofá. Não teve que arrumar a mesa, visto que a mesma estava posta. Dobrou em partes detalhadas o papel-bilhete e guardou-o na gaveta. Tinha fome, mas não comeu. Jogou fora os dois pães, com medo sabe lá Deus do quê. Era uma brincadeira, imaginou, de perverso mau gosto. Só tomou café puro e preto. Há anos não bebia assim. Lavou, secou e guardou a xícara azul e arrumou tudo no lugar. Naquele dia o tempo passou mais depressa, sem que ela tivesse saído do mesmo lugar esquerdo da mesa da cozinha.
         No dia seguinte, Amélia procurou-me:
– Está pensando em um romance com o padeiro?
– Não.
– Não foi o que eu pedi.
– De fato, não pensei nisso.
– Então o que está tramando?
– Nada.  Só quis criar uma expectativa.
– No saco de pão!!!
– Olha você não está deixando a história acontecer. Eu escrevo.
– Eu sei...
– Não sabe, não; dei-lhe vida e cabe a você interpretá-la e fim.
– É que eu gostaria...
– Você já é protagonista. Que mais quer? Já me trouxe um enredo, precário, mas um enredo.
– Precário? Lá vem a Senhora.
– Escuta aqui, deixe-me trabalhar em paz. Sem interrupções. Entendeu?
– Entendi. Mas sem padeiros, ouviu?

quarta-feira, 9 de março de 2011

A ESPERA DA PERSONAGEM - PARTE III (Leia textos anteriores para melhor entendimento)

Maria Amélia saiu de um bingo beneficente ás quatro da tarde. Ganhou dois panos de prato, de fato incríveis, um com bordadinho em ponto cruz imitando frutas, outro mais simples, nem por isso menos belo, xadrez em azul-branco, combinaria com sua cozinha. Caminhava lentamente pela Avenida Santa Efigênia para demorar mais tempo para chegar a seu apartamento.
Aos 52 anos, solteira e sem filhos, tinha todo tempo do mundo, assim, decidiu parar na padaria, como de costume, e comprar dois pães e uma latinha pequena de manteiga Aviação. Pegou, pagou, olhou, voltou, pediu para trocar por dois mais branquinhos, todo esse movimento fez com que ganhasse mais tempo, que era largo e tedioso, era preciso gastá-lo.
A rua estava um tanto deserta aos domingos e alguns bêbados arrastavam seus cacarecos e seus cachorros, todos têm um. O bêbado alimentou o cachorro com o pouco que tinha e Amélia pensou na miséria e afetuosidade humanas. Imaginou ter um cão. Desistiu logo que viu o animal carinhosamente lamber a face enegrecida do homem-bicho. Não suportaria uma lambida aos 52 anos.
Entrou finalmente no prédio e resolveu ir de escada. Subia e parava... Subia e parava... Subia e parava. Abriu. Lavou os panos de prato e optou por engomá-los. Fez o café. Ferveu o leite. Guardou a nata. Arrumou o canto esquerdo da mesa. Pegou a xícara azul. Abriu a Aviação. Tirou os pães e arrumou-os cortando-os em duas canoas. Iniciou a dobra do saco vazio do pão, metodicamente, ao meio, em quatro e notou algo diferente. Na parte traseira do papel-marrom algo estava escrito. Vagarosa foi ao quarto buscar os óculos de perto. Lia-se “Gosto de você”.
Maria Amélia segurava o embrulho entre as mãos tremidas e lia repetidas vezes, chegou a balbuciar bem baixinho, afim de que ninguém a ouvisse, somente ela, “Gosto de você”. Naquela noite não tomou café, nem guardou nada. Deitou apenas e dormiu.

segunda-feira, 7 de março de 2011

A ESPERA DA PERSONAGEM - PARTE II

Dona Maria Amélia comentou em um bingo beneficente, com uma conhecida qualquer a senhora Zulmira Pontes, do desejo de ser uma grande personagem. Comentou também que havia conversado comigo e que tinha ganhado um poema, que intitulou de: Poema-insultos-da-escritora-chinfrim.  Acometidas, então, pelo desejo de vingança diante das minhas críticas acerbas, as duas senhoras bateram em minha porta.
Assustada perante algo tão inusitado – nunca nenhuma de minhas personagens havia se revoltado dessa maneira; lembro-me, apenas, do diálogo memorável em que o escritor Miguel de Unamuno conta para Augusto Pérez que o mesmo era simplesmente uma obra ficcional e estava destinado a morrer no final da história-insisti para que as duas voltassem aos seus destinos, antes que as matassem, em definitivo.
Após alguns minutos de silêncio, Maria olhou-me e perguntou-me o que poderia fazer para tornar-se uma grande protagonista. Reiterou ainda, que faria o que fosse necessário, uma dieta, novas leituras, um curso de datilografia, um “workshop” teatral, uma maquiagem definitiva e arriscaria uma tatuagem. Respondi olhando em seus olhos imóveis, apáticos e sem brilho: “Traga-me um enredo!”
Depois que saíram senti um frio enorme no peito. Como pude dizer isso? Que amadorismo pueril. Estava deixando-a transitar livremente em minha literatura e realmente a situação, agora, era perigosa. Isso caminharia para um motim, a Convenção das Personagens Secundárias, imaginem uma heroína com o nome de Zulmira Pontes, jogadora de bingos, meu Deus!
Dois meses depois minha angústia era mais que latente, pululava, não escrevia mais nada; lia o maldito epigrama feito para Maria Amélia, pensava em sua revolta, seu sumiço. Naquela noite, porém, a campainha havia tocado. Maria Amélia Canto e Melo estava diferente. Os olhos vivazes e brilhantes, o rosto menos transtornado e mais jovial, certo riso afeiçoado. Esticou o braço e entregou-me um pequeno folhetim: “Seu enredo”!

REGISTRO GERAL

Uma foto um número outro número uma mãe sem pai não declarado assinado com dedo de tinta. Agora é cidadão para valer!