segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

CROSSOVER

Há um tanto de várias mulheres
que se misturam em mim
se o olhar de ressaca não é pela perda
é um tanto pelo marasmo da vida
não é que queira ver o pôr do sol
ou ainda trocar olhares com búfalos
há mais de mim que não se entende e
o cotidiano me aflige aos montes e não quero ficar calada
não há nada de depressivo a ponto de
me jogar diante de uma estrela
não é a hora, minha hora, meu instante
tenho muito a revelar
tenho a velhice por vir, atrasada nas lembranças de minha infância feliz
que se surpreende nas memórias de como me tornei
essa mulher
não posso ficar calada e tenho tido menos coragem em dizer
porque há também um complicado ou isto ou aquilo
que me angustia
porque o sentimento traz tanto pensar em tudo?
não sei responder ainda
tenho dúvidas da mulher que me tornei
tenho medo também da senhora que virá daqui a pouco
queria os poderes das mulheres maravilhas
das atrizes e amantes e escritoras e cientistas e lavadeiras e donas das casas
queria ter um pouco delas em mim
um tanto além do que apenas sou e do muito que queria ainda ser 

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

EQUIVALÊNCIA (Para Guilherme)

    Esse é o primeiro texto de 2017. Não sabia ao certo o que escrever e também estava sem grandes vontades, já que passei parte do ano passado tentando escrever e algo parecia que não se encaixava, ora tinha tema e nada de desejo, e assim não escrevia nada novo...

    O fato é que para tudo nessa vida há que se ter a troca, e assim nessa toada percebi que nem sempre que damos algo em troca, recebemos de valor igual outro algo. A lei da equivalência deveria ser de fato algo concreto, mas não é. Nem sempre o que perdemos volta, nem sempre o que parte retorna, e também não há certeza se tudo aquilo que amamos, da mesma forma nos amará. Embora saiba que longe de ser igual, a equivalência pressupõe uma relação mútua, cuja troca só acontece se ambas as partes acreditarem que aquilo é verdade, assim sendo a equivalência só reside no sentimento. O amor é talvez a única forma que transite na lei da equivalência e nem há garantias que ele resistirá por tanto, tanto tempo.

    Essa é primeira tentativa de escrever algo novo. Não sei que preço terei que pagar ao longo desse ano na esperança de que consiga escrever novas coisas; tenho tido menos coragem, nenos vontade, imaginação, inspiração. Talvez a troca seja entre a escritora que dormita em mim e a pessoa que vê a impossibilidade de continuar a escrever, ambas transitam na equivalência, só não sei qual delas é a verdade.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

URDIDURAS- parte final

        A vida é um capítulo inacabado, porque nossas lembranças ficam ocupando a memória de quem fica.

        A trama inacabada de nossas personagens foi colocada no tear do acaso. Não se pode dar um fim para isso. Os fios da vida dos dois, ela e ele, serão tecidos ou não pelo tempo, pelo seu tempo, na ação de urdir, entre os dedos de quem faz a trama.

URDIDURAS-Um conto inacabado

Capítulo 9
A estradinha de terra ainda cheirava o úmido orvalho da noite anterior. Antônio ia por ela mais pensativo que de costume, pois a visita do filho, a imagem das folhas secas e todos os acontecimentos últimos, haviam tomado uma forma estranha em sua cabeça.  Forma de nuvem em pequenas bolas, que ora dispersavam, ora eram para chuva.
Na cancela, que abria e fechava, um hóspede puxou certa conversa enquanto tentava um entrosamento com o cão bege. Perguntou se sempre morou na região, se tinha filhos, se o cão tinha nome. Investigou o que queria e se foi. Mas o estopim daquela conversa não foram as perguntas sabatinadas feitas ao homem da cancela e sim, como Antônio se sentiu ao respondê-las. Se antes sua cabeça girava em turbilhões, agora eram imensas tempestades de dúvidas, desejos, e vontades estranhas.
Desejou ter sido jardineiro, e relembrou todas as plantinhas que haviam sido enterradas no quintal de sua casa. A mãe chegava com a muda no saco preto e entregava para o menino, que já não era mais ele, o moleque tirava com o maior cuidado, porque havia aprendido com a mãe essa delicadeza do plantio, arranhava os dedos na terra e fazia o buraco. Guardava a raiz lá dentro e ajeitava a terra ao lado, em montinhos. Sentava ao lado e ficava olhando para a mudinha verde e quieta. Ficava a manhã toda ali, até o pai chegar com um safanão a lhe pedir que fizesse alguma coisa ao invés de ficar ali plantado.
Na volta, pela mesma estrada de tantos anos, de imensas idas e vindas, de tanta poeira levantada o homem sentiu uma profunda e irrefutável sensação de mudança. Como se quisesse trafegar em novas terras e caminhar por outros rumos. Plantar novas mudas. E assim, desses rompantes é que surgem as ações que nos levam para lá ou para cá. São essas dúvidas somadas às angústias da alma que nos fazem agir. Não estava ainda bem certo o que o homem faria, porém alguma coisa ia mudar. O cão bege vinha ao seu lado no mesmo compasso de sempre.





URDIDURAS- Um conto inacabado

Capítulo 8
Acordou do sonho bom que há tanto tempo não lhe faziam as noites mal dormidas. Sabia apenas que era bom porque o coração lhe dizia isso, mas não se lembrava de parte alguma. Fez o café em silêncio e tentou coordenar as ideias para ter a certeza de que continuaria com tudo que havia determinado para si mesma de que faria. Sim. Fez o café e esquentou o leite. Fez mais barulho que o normal e o homem acordou.
Joana esperou que reclamasse e assim que o marido botou cara na sua, disse que estava grávida. Não estava. Disse segunda vez ao marido que estava grávida, que finalmente ele seria pai, disse que ainda era começo, que não sangrava havia pouco tempo. O marido perguntou se ela estava certa e se estava passando bem. Ela respondeu que sim e que não, enjoava. Disse tudo isso com tanta certeza que a mentira virou quase verdade na palavra da mulher. O marido abriu a boca e ia dizer qualquer coisa. Apenas chorou, jurou, chorou, jurou que não batia mais em nem um fio do cabelo dela, e chorou. Nem viu que a mulher já havia saído para o trabalho.
Sacolejando no ônibus os pensamentos de Joana iam ao infinito. Sentia uma combinação estranha de euforia e tristeza sem entender ao certo aonde tudo isso a levaria. Só conseguia lembrar-se de que não apanharia mais e essa era toda a certeza que tinha tal qual a mesma certeza, que se não passar o pano seco sobre o lustra-móveis a madeira não fica brilhando. O tempo era mais largo e esperançoso. Era isso: o tempo havia lhe emprestado a possibilidade de um amanhã.

No almoço comeu tanto que não conseguia espanar nenhum lustre. A colega de serviço perguntou se estava bem e ela disse que não porque tinha comido demais. Nessa noite antes do marido chegar, a mulher comeu em casa tudo que havia. Esperou o marido chegar para vomitar na sala, quase aos pés dele, que ao invés de bravo, achou graça no vômito. Ela disse que limpava, ele disse que fosse descansar, que ele mesmo limpava. Disse que o filho era só dele e dos brabos igual ao pai. Não apanhou a Joana mais, apenas sonhou com um menino que nem existia, porém com uma cara igual a dela.

URDIDURAS-Um conto inacabado

Capítulo 7
Passou a manhã lembrando-se da cena que imaginara e sentiu-se muito mal. Era homem de matar formigas, mas quem diria matar a sua mulher, inda mais com folhas secas. Ficou por ali entre uma cancela aberta e outra, comanda preenchida com letra e número, pensando em tudo. Pensou no filho, se estaria ainda por lá, pensou também no jardim de pequenas árvores arredondadas por ele com uma imensa tesoura de poda. Eram tantos pensares que olhou certa hora para o cão bege que roía um graveto de pau e tentou concentrar-se apenas no olhar, no som do ranger de dentes do cão.
Teve a fiel companhia canina na volta para casa. A fidelidade de um cão é inexplicável, gratuita, dava-lhe comida isso é verdade, mas eram restos do que lhe sobrava de jantar, e isso não tinha juízo para um cão, nem questionava se era resto, era algo dado, assim dividido, e um cão não pensa nessas coisas, cão aceitava a dádiva e balançava o rabo feliz. Vinham os dois no mesmo andar cadenciado que levantava apenas uma pequenina poeira. De longe viu o filho na varanda da casa ao lado da mãe. Tinham rostos parecidos até mais por sentimentos mútuos que guardavam, do que pelo parentesco que os unia. Ao perceberem que o homem Antônio chegava, entraram.
Sentou-se na escada e montou um cigarro de palha. Picou o fumo em pequenos pedaços e enrolou devagar. Ouviu o rapaz se despedir da mãe e dizer que depositava dinheiro para ela, que recusou e disse que estava bem, havia ganhado muito nas faxinas e que não carecia. Parou em frente ao pai, despediu-se com um abano de cabeça fraco e frouxo. O cão bege não latia porque já se sabe que não late a quem parte, pois sabe o cão que quem parte já se vai tarde.

A mulher na cozinha trazia um misto de tristeza e alegria estampado no rosto. Antônio perguntou se o rapaz estava bem e a mulher respondeu que graças a deus estava sim. Não havia puxado ao homem, era moço de opiniões claras e definidas e sabia bem o que queria da vida, que não era um ser que abria e fechava cancelas, a esperar da vida sabe-se lá o quê. A imagem da mulher cheia de folhas secas na boca veio á mente do homem, que tratou de pegar uma banana e descascá-la para depois enfiar bocados em sua própria boca.

REGISTRO GERAL

Uma foto um número outro número uma mãe sem pai não declarado assinado com dedo de tinta. Agora é cidadão para valer!