Bastos
era um senhor de sessenta e poucos anos que vivia sozinho em um pequeno
apartamento do centro da cidade de São Paulo. O único filho morava em outro
país e falavam-se poucas vezes durante o ano. Alguns parentes no interior, que
a ausência de contato havia guardado na última gaveta da memória qualquer
possibilidade de reencontros. Da sua rotina diária, além dos pequenos afazeres
de limpeza, manutenção da sua sobrevivência, cozinhar algo, aparar a barba,
alimentar os pássaros, sobrava-lhe uma enorme parte do dia para nada fazer.
Bastos
era homem comedido, falava pouco e durante toda a vida mediu bem aquilo que lhe
saía da boca; entre falar e dar sua opinião preferia calar-se; o que fez com
que escutasse a vida toda que era um pau mandado, um nada, um livro sem
receitas, um homem vazio... Nunca se importou com isso, não falava porque não
valia a pena dizer, somente o que era certo era dito “três pães, por favor,”,
não importava dizer algo sobre a coloração dos pães, “nossa, como estão
tostados”, já estavam tostados, de que valeria dizê-lo.
Naquela
manhã aparava a barba como o costume lhe mandara fazer, com a pequena
tesourinha em punho, tirava pequenas lascas dos pelos grisalhos, que caiam
sobre o pano metodicamente aberto na pia. Olhava para o seu rosto envelhecido e
pensava no transcorrer da sua vida. Não era homem de se revoltar, sua alma era
a mãe da resignação, aceitava as coisas, as pessoas, a vida, como aceitava o
dia virar noite; os fios ora brancos ora pretos salpicavam o lenço branco junto
com uma pequena gota de sangue “que merda!”.
O
homem olhava assustado para a imagem do espelho, não pelo corte feito, que era
pequeno demais para alguém dar-lhe algum valor, mas seu estupefato olhar era da
frase que sua boca havia proferido; não era homem de dizer vilezas, não era
homem de falar mal por pouco, nem por muito havia perdido sua linha; nada disso
era o que lhe tinha causado o pavor, a voz que lhe saíra da boca não parecia
ser sua, aterrorizado não sabia o que fazer, baixou os olhos para tirá-los do
espelho e sussurrou baixinho o seu nome, queria escutar-se.
A
confirmação do dia anterior veio na hora em que Bastos pediu os três pães e
queria os mais brancos porque estava cansado de pães tostados e com gosto de
queimados; sua voz agressivamente pedia ao rapaz do balcão que estranhou o
pedido, mas agiu como a fala proferida lhe ordenara. Bastos tentou
desculpar-se, porém o que lhe saiu pela boca foi que nunca mais haveria de lhe
empurrar pães de quinta categoria. Resolveu não mais dizer nada, haveria de
fazer-se calar, pegou o saco, pagou e correu para casa, assustado como se
estivesse preso em alguém que não era ele.
Em
casa defronte ao espelho mirava-se com estranheza e pavor; “está olhando o
quê?”, a frase que ele mesmo dissera, fizera-lhe rir a gargalhada mais histericamente
possível, só pensava que estaria louco, não tinha coragem de dar nem mais um
pio; passou o dia sentado na beirada da cama numa mudez sobre-humana quando se
assustou com o tocar estridente do telefone, correu a pegar o fone, mas
titubeou, afastou-se, retornou, atendeu; “ah, é você seu ingrato, não telefona há
tempo deve precisar de algo, desembucha logo que tenho
mais o que fazer!”.
Como
diria o ditado: a boca fala e... ele quem paga; ficou Bastos a ouvir o sinal
intermitente da ligação interrompida. Passou sua voz então a praguejar as mais
absurdas frases, resmungava,contava, lembrava, cantava, assobiava, discursava,
orava, discutia, papeava e dialogava consigo mesmo. “Eu penso, eu opino, digo,
juro, minto e menciono”. Estava em um estado absolutamente esfuziante, como se
sua garganta, ora dantes travada, tivesse desatarraxado num mar de arquixilemas
e arquifonemas.
Se a
voz dominara o homem ou se ambos haviam se fundido em um só não é coisa para se
pensar nesse momento da narrativa porque nada de filosófico há na mudança e o
que se é relevante dizer são os fatos, os fios condutores das ações; o caso é
que o senhor Bastos estava mudado e nem mesmo sabia onde tudo isso tinha
começado, acostumara-se com a nova maneira que a vida lhe impusera com a mesma
brandura que se habituara a barbas; agora era ser que cuspia fogo, deixava
marca por onde passasse, rasgava todos os verbos, espantava os bichos,
encantava e desencantava.
Bastos
era um senhor que vivia sozinho em um pequeno apartamento do centro da cidade
de São Paulo. O único filho morava em outro país e falavam-se várias vezes
durante o ano. Alguns parentes no interior visitavam sempre o homem, que recebia
todos calorosamente em longos papos e risadas madrugada a fora, resgatando
sempre o que havia guardado na primeira gaveta da memória: lembranças. Da sua
rotina diária, além dos pequenos afazeres de limpeza, manutenção da sua
sobrevivência, cozinhar algo, aparar a barba, alimentar os pássaros,
sobrava-lhe uma enorme parte do dia para conversar, cantar, aconselhar, jogar
conversa fora, discutir...