PRIMEIRO ATO
Mulher
de trinta anos, aparentando quase os quarenta, cabelos duramente crespos, corpo
magro e gélido, murcho, como um balão depois de estourado, olhos curvos
acentuadamente castanhos e brilhosos não se sabem os porquês. Personagem da
vida cotidiana, da cidade, da comunidade em que vive, com o homem que o destino
lhe reservou, também não se sabe o porquê.
Nas
suas cenas rotineiras, acorda ás cinco e dez da madrugada, para que se tudo
correr como o de costume, chegar ao lugar de ofício sete em ponto. No trajeto,
essa mulher não pensa em nada. Observa a paisagem como se nunca tivessem
passado as vistas, inéditas e estranhamente perdidas. Não se lembra do dia
anterior, porque lhe ensinara a vida que é preciso vivê-los assim um a um, sem
certezas de nada, como a um remédio que não se sabe se a gota cairá ou não.
O
limpar dos pisos, das escadas e corrimões eram feitos cada dia de uma maneira
diferente para que nada fosse igual. O lustra móveis era enjoativo, e o cheiro
impregnado em suas mãos não saía. Outra coadjuvante da faxina perguntou para a
moça o que era o olho roxo e inchado e como àquilo não deveria fazer parte do script
da sua vida, respondeu suavemente que caíra da escada, lustrara demais os pisos
e mentir era tão fácil e rápido como lustrar.
Apanhava
dia sim dia não. Dependendo da vontade do homem que o destino lhe reservou e da
sorte, apanhava apenas uma vez na semana. E também assim, uma vez na semana,
gastava no restaurante do prédio um dos seus vales-alimentação, separadamente
guardados pela mentira e comia o que era somente o prazer, seu pequeno e único
prazer, porque já se sabe que é preciso deixar que um dia corra de cada vez,
como o cavalo que corre na sua raia, sem pensar em nada, apenas esperando a
chegada final.
Se
na ida não pensava em nada, na volta era diferente. Pensava como terminaria o
seu dia. Não sentia mais medo, porque já havia passado dessa fase, a do terror
também, a da tristeza, da raiva e não se sabe por qual razão encontrava-se na
resignação. Não da fé. Nem pensava mais em Deus, porque não mais adiantava
pensar nele. A resignação era da certeza, da real e certa e fatídica situação
que lhe esperava. A mesma certeza como o cheiro impregnava suas mãos.
Naquela
noite apanhou. Chorou e dormiu. Sonhou que matava o homem que o destino lhe
reservou com uma faca afiada. Com o corpo amolecido em sua frente ela limpava o
sangue com o paninho de lustrar para depois embrulhá-lo no lençol. O corpo
sumia de repente. No sonho, na cena seguinte, ela saía caminhando tão livre que
o medo era forte e intenso. No restaurante do prédio ela pedia o prato mais
caro e o doce mais doce que tinha.
Naquela
noite apanhou. Chorou e dormiu.