SEGUNDO
ATO
Para
uns é sinal de bravura e destemor, outros de descaramento e petulância, a
coragem é o sentimento mais confuso que há, pois não se nasce com ela,
adquire-se. Os maus a possuem em demasia e nem sabem que suas crueldades são
fruto de suas coragens desmedidas; os bons sonham com ela, planejam, calculam
os riscos, porque para estes, ser corajoso é ser irracional, é como atravessar
as ruas sem olhar ou vestir uns patins.
A
mulher nessa manhã acordou diferente. Lembrou-se do sonho com detalhes e ficou
confusa demais. No trajeto da ida costumava não pensar e apenas olhar o nada,
mas tudo parecia mais conturbado e sair da rotina, trabalhar, apanhar,
trabalhar, apanhar não estavam nos seus planos. O ápice dessa imensa confusão
mental foi perceber que havia trocado a marca do lustra móveis, a gerente
enjoara com o cheiro anterior. Não sabia o que pensar, nem o que dizer ou
fazer, parecia não entender, como não entendem algumas pessoas os espetáculos
em dois atos.
Naquele
dia não apanhou. Não se sabe o porquê que ela não apanhou. Se o roteiro original
havia sido modificado. Não se sabe se o destino achou que era hora de plantar
algo por ali. Ou o mero acaso das coincidências. Ou mesmo não se sabe se Deus
se desocupou das suas tantas mazelas a serem resolvidas e decidiu olhar para
aquela sua filha, a faxineira, murcha de carnes e de sentimentos, olhos vivos
porque a vida lhe ensinara que era preciso viver uma noite de cada vez, assim
como se descasca primeiro a laranja para depois comê-la.
Não
lembrava a mulher de não dormir durante a noite, por causa do corpo e dos ossos
e dos olhos tão fatigados do dia que essa tarefa lhe parecia impossível, porém
não dormia; olhava para o corpo do homem que o destino lhe reservara e que
agora dormia o sono dos injustos, com um olhar estranhamente revelador. A
mulher olhou e se levantou. Foi até a cozinha e procurou. A coragem lhe invadiu
os últimos neurônios que agitadamente se concatenavam em ideias e ações nunca
antes pensadas tampouco sonhadas.
A
mulher juntou tudo o que tinha as poucas roupas, os documentos, o dinheiro
mentirosamente guardado, o dinheiro do homem, e qualquer outra coisa que fosse
somente sua. Saiu pela madrugada a caminho não se sabe ao certo para onde, mas
ela sabia que era para muito longe dali. Longe daquele homem e de todos os
panos de lustrar. Na rodoviária, parou em qualquer destino, porque nessa altura
não importava mais o para onde e sim o ir. Foi-se.
A
vista da estrada era clara e límpida como a água do rio da nascente que brota.
2 comentários:
Ah, Marilinda... fico aqui, esperando um possível terceiro ato.
Beijo!
Alê, realmente não planejei o terceiro ato, queria mesmo que ficasse ao vento, nas imagens de cada um...
Beijão
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