segunda-feira, 10 de junho de 2013

CRÔNICA EM DOIS ATOS-II


SEGUNDO ATO

Para uns é sinal de bravura e destemor, outros de descaramento e petulância, a coragem é o sentimento mais confuso que há, pois não se nasce com ela, adquire-se. Os maus a possuem em demasia e nem sabem que suas crueldades são fruto de suas coragens desmedidas; os bons sonham com ela, planejam, calculam os riscos, porque para estes, ser corajoso é ser irracional, é como atravessar as ruas sem olhar ou vestir uns patins.

A mulher nessa manhã acordou diferente. Lembrou-se do sonho com detalhes e ficou confusa demais. No trajeto da ida costumava não pensar e apenas olhar o nada, mas tudo parecia mais conturbado e sair da rotina, trabalhar, apanhar, trabalhar, apanhar não estavam nos seus planos. O ápice dessa imensa confusão mental foi perceber que havia trocado a marca do lustra móveis, a gerente enjoara com o cheiro anterior. Não sabia o que pensar, nem o que dizer ou fazer, parecia não entender, como não entendem algumas pessoas os espetáculos em dois atos.

Naquele dia não apanhou. Não se sabe o porquê que ela não apanhou. Se o roteiro original havia sido modificado. Não se sabe se o destino achou que era hora de plantar algo por ali. Ou o mero acaso das coincidências. Ou mesmo não se sabe se Deus se desocupou das suas tantas mazelas a serem resolvidas e decidiu olhar para aquela sua filha, a faxineira, murcha de carnes e de sentimentos, olhos vivos porque a vida lhe ensinara que era preciso viver uma noite de cada vez, assim como se descasca primeiro a laranja para depois comê-la.

Não lembrava a mulher de não dormir durante a noite, por causa do corpo e dos ossos e dos olhos tão fatigados do dia que essa tarefa lhe parecia impossível, porém não dormia; olhava para o corpo do homem que o destino lhe reservara e que agora dormia o sono dos injustos, com um olhar estranhamente revelador. A mulher olhou e se levantou. Foi até a cozinha e procurou. A coragem lhe invadiu os últimos neurônios que agitadamente se concatenavam em ideias e ações nunca antes pensadas tampouco sonhadas.

A mulher juntou tudo o que tinha as poucas roupas, os documentos, o dinheiro mentirosamente guardado, o dinheiro do homem, e qualquer outra coisa que fosse somente sua. Saiu pela madrugada a caminho não se sabe ao certo para onde, mas ela sabia que era para muito longe dali. Longe daquele homem e de todos os panos de lustrar. Na rodoviária, parou em qualquer destino, porque nessa altura não importava mais o para onde e sim o ir. Foi-se.

A vista da estrada era clara e límpida como a água do rio da nascente que brota.

 

 

2 comentários:

Alê Ferraz disse...

Ah, Marilinda... fico aqui, esperando um possível terceiro ato.

Beijo!

Valsa Literária disse...

Alê, realmente não planejei o terceiro ato, queria mesmo que ficasse ao vento, nas imagens de cada um...
Beijão

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