PUBLICO AQUI CAPÍTULO DÉCIMO E CAPÍTULO FINAL DO CONTO
UM SONHO APENAS, AGRADEÇO A TODOS QUE ACOMPANHARAM COM EXPECTATIVA AS PUBLICAÇÕES DIÁRIAS.
CAPÍTULO
DÉCIMO
“O olhar da opinião, esse olhar agudo e
judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que
ele se estende para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos
dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável
como o desdém dos finados.”
Para o velho, bom e
honesto Jonas sua ideia fixa de cumprir a risca o sonho não lhe parecia imoral,
tampouco necessária de novos julgamentos. Não deixou que Freitas os fizesse e
também lhe pediu o juramento do segredo. Na realidade, todos os julgamentos que
fizera nesses dias todos o abonavam para tais atitudes. Iria sim.
Freitas ficou de investigar o local e o remedinho. Senhor
Jonas tratou de jogar a bengala fora e foi caminhar. O que é o estímulo senão a
fruta mais no alto, bela e doce, pronta para ser colhida não importe sua
altura? Assim com bengalas aposentadas o homem caminhou, jogou dominó pela
tarde toda e sentia suas pernas doloridas e desemperradas.
Durante a semana, os amigos iam acertando os detalhes da
trama, Freitas havia achado o local em outra cidade. Precisou de algumas
mentiras para enganar sua mulher e disse que levaria Jonas em um novo médico de
outra cidade, pedido feito pelo João. O mais difícil foi comprar o remédio, mas
o que não se faz por um amigo.
Combinaram por telefone com a dona do bordel o preço e as
condições de um cliente muito especial. Muito mesmo! Jonas descreveu duas das
moças do sonho e disse que a terceira não tinha conseguido ver o rosto. Afirmou
que confiava no gosto da senhora, mas a terceira havia de ser uma perfumada,
muito perfumada. A mulher ria do outro lado da linha.
Naquele final de tarde, o velho e bom Jonas arrumou-se
num terno preto e bem alinhado. Usou a melhor colônia. Olhou-se no espelho, riu
para si mesmo. Viu na imagem o moço, o homem de antes. Sentiu-se tão jovem, tão
rebelado da alma como o mar em dia de arrebentação. Remorsos? Nenhum. Dúvidas?
Nenhuma. Sensações: todas!
– Seja bem vindo!
– Amigo venho buscá-lo
amanhã cedo! A senhora, por favor, me telefone se...
– Obrigado Freitas, pode ir,
vá amigo, estou em ótimas mãos, não é mesmo!
– Fique tranquilo senhor
Freitas, cuidaremos dele como a um bebê.
– Imagino...
CAPÍTULO
FINAL
– Sr. Jonas acorde, acorde.
Está na hora de ir...
– Nossa! Eu não morri...
Senhor Jonas não só não morreu naquela noite
deliciosamente vivida entre ele e suas amantes como viveu muitos anos ainda,
precisamente mais nove. Não precisou repetir a façanha porque agora ele saberia
que perderia todo o sentido. Preferiu ficar com lirismo e romantismos conseguidos
naquela madrugada, inclusive porque agora a mulher do sonho tinha um rosto e um
belo rosto. E sua vida um arremate incrível!
Naquele final de ano, sua família veio para as festas de
Natal. Ninguém notou nada, exceto Pedro seu neto que o achou diferente. As
afinidades são únicas entre algumas pessoas, pode-se até amar de maneira
igualitária a todos, porém a afinidade é o tempero mais sublime do amor.
Decidiu que talvez um dia contasse o feito ao neto, mas receava algum
julgamento. Não contou.
Seu Jonas foi encontrado morto na sua cadeira de leitura.
Tristemente quem o achou foi outro garoto (o anterior havia crescido) que o
chamou sem resposta. O menino chorava feito louco, pelo velho, é claro, pelo
corpo inerte e talvez pelos trocados agora perdidos. Nicinha aos prantos chamou
Freitas.
Morte linda! Ali recostado, com o livro aberto deitado no
colo. Morreu de velhinho mesmo que estava. Freitas chegou e ficou ali parado
por um tempo longo, segurando a mão do amigo. Seu semblante era doce e
tranquilo. Sua amizade eterna. Não chorava, mas acariciava os dedos gélidos
numa tentativa última de despedida.
O
livro recolhido eram as Obras Completas de Machado de Assis. Freitas guardou
consigo o livro e o segredo.
Muita gente foi ao enterro. Na lápide os filhos e o amigo
Freitas mandaram colocar um belo epitáfio, longo e digno do pai: “Saudades, amor e descanso em paz para Jonas Matos
Silva, amado pai, bom homem, trabalhador digno, respeitável cidadão boraense,
deixa saudosos filhos, netos e bisnetos, parentes e amigos”.
Lá do céu o Senhor Jonas riu, riu muito!
NOTA
Os
trechos em itálico foram retirados do livro: Memórias Póstumas de Brás Cubas de
Machado de Assis; Obras Completas; editora Nova Aguilar, 1962.
DEDICATÓRIA
Dedico esse pequeno e modesto conto ao meu
grande Mestre Machado de Assis, grande inspiração em todos os momentos de minha
vida.
Marili
de Carvalho Santos