sexta-feira, 25 de novembro de 2016

URDIDURAS - Um conto inacabado

Capítulo 1

Mulher de trinta anos, aparentando quase os quarenta, cabelos duramente crespos, corpo magro e gélido, murcho, como um balão depois de estourado, olhos curvos acentuadamente castanhos e brilhosos não se sabem os porquês. Personagem da vida cotidiana, da cidade, da comunidade em que vive, com o homem que o destino lhe reservou, também não se sabe o porquê.
Nas suas cenas rotineiras, acorda ás cinco e dez da madrugada, para que se tudo correr como o de costume, chegar ao lugar de ofício sete em ponto. No trajeto, essa mulher não pensa em nada. Observa a paisagem como se nunca tivesse passado as vistas, inédita e estranhamente perdida. Não se lembra do dia anterior, porque lhe ensinara a vida que é preciso vivê-los assim um a um, sem certezas de nada, como a um remédio que não se sabe se a gota cairá ou não.
O limpar dos pisos, das escadas e corrimões eram feitos cada dia de uma maneira diferente para que nada fosse igual. O lustra móveis era enjoativo, e o cheiro impregnado em suas mãos não saía. Outra coadjuvante da faxina perguntou para a moça o que era o olho roxo e inchado e como àquilo não deveria fazer parte do script da sua vida, respondeu suavemente que caíra da escada, lustrara demais os pisos e mentir era tão fácil e rápido como lustrar.
Apanhava dia sim dia não. Dependendo da vontade do homem que o destino tinha lhe reservado e da sorte apanhava apenas uma vez na semana. E também assim, uma vez na semana, gastava no restaurante do prédio um dos seus vales-alimentação, separadamente guardados pela mentira e comia o que era somente o prazer, seu pequeno e único prazer, porque já se sabe que é preciso deixar que um dia corra de cada vez, como o cavalo que corre na sua raia, sem pensar em nada, apenas esperando a chegada final.
Se na ida não pensava em nada, na volta era diferente. Pensava como terminaria o seu dia. Não sentia mais medo, porque já havia passado dessa fase, a do terror também, a da tristeza, da raiva e não se sabe por qual razão encontrava-se na resignação. Não da fé. Nem pensava mais em Deus, porque não mais adiantava pensar nele. A resignação era da certeza, da real, certa e fatídica situação que lhe esperava. A mesma certeza como o cheiro impregnava suas mãos.

Naquela noite apanhou. Chorou e dormiu. Sonhou que matava o homem que o destino lhe reservou com uma faca afiada. Com o corpo dele amolecido em sua frente ela limpava o sangue com o paninho de lustrar para depois embrulhá-lo no lençol. O corpo sumia de repente. No sonho, na cena seguinte, ela saía caminhando tão livre que o medo era forte e intenso. No restaurante do prédio ela pedia o prato mais caro e o doce mais doce que tinha.

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