Capítulo 4
Ás
sete em ponto a mulher que apanhava pegou seu pano de lustrar e decidiu que
hoje passaria apenas o óleo de peroba nas peças de madeira. Queria não pensar
na noite anterior e também não queria relembrar do sonho macabro que havia
tido. A colega de faxina queria por que queria puxar o assunto, especular do
tombo, do olho roxo, e acabou por contar que a vizinha dela apanhava do marido.
Queria por que queria arrancar algo, desconfiada que talvez estivesse. Mas da
boca da mulher ouviu mais uma mentira, como igual a outra e assim duas mentiras
iguais, viram uma verdade incontestável.
Terminou
de lustrar um piano e teve vontade de apertar uma tecla branca e outra que
estava ao lado preta, todavia não o fez. Faltou-lhe coragem de apertar a tecla
e ouvir o som. Faltou-lhe a mesma coragem que faltava em sua vida. Era hora do
almoço e pensou que podia comer uma empada de camarão. O preço da empada era o
mesmo do prato com arroz e feijão e frango e farofa, mas valia a pena comer
apenas uma empada de camarão. Tentou tirar o cheiro das mãos para que ele não
se confundisse com o cheiro divino do camarão, porém não conseguiu. A empada
desceu lisa pela garganta e a mulher sentiu-se feliz.
Não
importava se o dia terminaria como tantos outros dias estavam terminando, ela
hoje estava um pouco feliz, havia guardado o gosto do camarão e da massa que
havia derretido em sua boca. Na volta lembrou- se do sonho, porque quando
alguém estando a nos levar, os pensamentos surgem mais fáceis e mais ligeiros.
Teve um tanto de medo. Teve um bocado de medo. Em casa o marido não estava e a
mulher deu graças a Deus por não ter que apanhar naquele momento.
Deixou
a comida pronta e por um instante pensou que podia colocar vidro quebrado na
farinha, pensou se ele podia engolir e morrer aos poucos, porque o vidro
cortaria devagar o estômago, e não conseguiria vomitar, e ele ia caindo aos poucos...
Interrompida foi pelo homem que chegou bêbado e ela pensou que era seu dia de sorte
mesmo, empada de camarão, estando bêbado não batia nela, batia sóbrio porque
ele era lúcido na sua crueldade, bêbado ela até achava que o homem era
simpático.
O
homem chorou quando olhou para ela e perguntou porquê era que não haviam de ter
um filho, pediu perdão por bater nela, mas disse que era merecido porque ela
não era mulher para lhe dar um filho, e resmungou que se batia era para ela
aprender, porque na vida só se aprende apanhando, ele tinha apanhado e
aprendido tudo e que então ela só podia apanhar até aprender. Sim era isso. E o
homem ficou lá estendido no sofá, e chorou e adormeceu.
A
mulher olhava para ele e sentia-se aliviada por toda a sorte que havia tido
naquela noite, pensou também que ela era ruim, que ainda bem que não tinha
vindo filho ao mundo, pensou no vidro na comida, na faca, no sonho, no piano,
no óleo de peroba, na empada. Sentia-se tão feliz, mas não conseguia sorrir.
Apagou as luzes. Cobriu de coberta o homem no sofá e foi dormir. Naquela noite
não sonhou.
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