sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Olhar xadrez

    A criança olhava para mim tão profunda e estranhamente, que confesso tinha medo. Cabelos curtíssimos, nem gorda nem magra, toda castanha. Na aparência era a mais normal das crianças.
      - É sua vez Rafa. 
     O menino levantava e passava me olhando antes de entrar no consultório; Isso acontecia todas às quartas-feiras, as sete da noite, nesses últimos três meses. Nem uma palavra, nem para mim, nem para sua mãe, nem para Dr. Fonseca.
     A porta abria-se depois dos cinqüenta minutos cravados e... 
     - Até semana que vem Rafael. Espero você para conversarmos mais..._ dizia, Dr. Fonseca, sempre que o garoto emudecido saía da sala. 
     Sabemos todos, porém, que Rafael, não só não dizia nada, há exatos seis meses, como também, não falava na escola, nem em casa, nem com os pais, ou com a irmã. Não tinha motivo aparente para tal acontecimento: nada de traumas, sem doenças, nada, absolutamente nada. Apenas um transe, uma mudez calada, um sei-lá-o-quê inexplicável.
     Ninguém ouviu sua voz depois de um dia qualquer, que a mãe não mais se lembra, e que só botou reparo quando a coisa ficou mais séria e perceptível. O fato é que muitos doutores, professores, benzedeiras e amigos tentaram antes do Dr. Fonseca, dantes nova esperança, que hoje já estava velha, visto que o menino não balbuciou nem um a.
     De todos os pacientes que eu cadastrava, fazia ficha, nesses longos anos com Dr. Fonseca, nada me pareceu tão assustador e insólito.
     -O senhor tem certeza que ele não é autista, ou sofreu algum trauma e não quis contar.
     - Pelo que a mãe disse, trauma, nenhum, e claro, ele não é autista, ele interage comigo, olha no olho, como se eu tivesse culpa de algo. Semana passada jogamos xadrez, não lhe contei?
     - Não, incrível Dr., e ele disse...
     - Nadinha.
     -Nem xeque-mate?
     - Não terminamos, hoje ele não quis nem jogar. Estamos na mesma partida há um mês e creio que ele não quer terminá-la.
     _-Vai perder o paciente, a mãe trocou idéia com Dona Olga e disse que o Sr. não estava acertando. Dona Olga insistiu que esperasse, pois o doutor sempre resolvia, ela que gostava de uma terapiazinha mesmo e estava ali a anos e nem pretendia deixá-la; Mesmo com alta.
     - Não sei mais o que tentar... 
     E o pobre homem sumiu pelo corredor.
     Entrei em sua sala e vi a mesinha com o tabuleiro. Arrumei as coisas, recolhi o lixo e as fichas atendidas, fechei as cortinas. Quando voltava, retirei uma das peças brancas, um cavalo, que estava ao lado da cadeira, no chão. Escolhi uma das casas e coloquei a peça. Fechei o consultório silenciosamente.
     Minha quietude durou muitos dias, tentando entender a alma humana. Mantinha uma tristeza vaga e persistente. De todos os casos, esse ardia, porque era incomum, beirava a insolubilidade, num ser que nada tinha vivido ainda, tão pequeno, verdinho, verdinho das depressões cotidianas e dos desprazeres.
     Na quarta-feira que se seguiu, depois do garoto entrar, sua mãe se dirigiu a mim e perguntou quanto devia.
     -Acerte no final do mês.
     -Vou levá-lo a outro lugar, é que você sabe, não está  resolvendo. Estou enlouquecendo! Meu marido não quer mais saber, disse que a culpa é minha, estou desesperada e não sei o que mais fazer.
     - Entendo. A senhora é quem sabe. 
     Enquanto preenchia o cheque, ouvimos de dentro da sala: 
     - Eu disse que não é aí. O cavalo não estava aí. É  na casa h - 5. 
     Rafael gritava, aos berros, urrava, vomitava palavras, altas, sonoras, ecoantes...
     A mãe rasgou o cheque e trocamos um largo sorriso.

Um comentário:

Fábio Roberto disse...

Esse garoto é que nem a Marili. O blog-voz saindo no momento certo. Que bom!

DOIS AXIOMAS RALÉS

  AXIOMA AMOROSO Entender o outro É respeito Aceitar o outro: amor.   AXIOMA REVOLTO Ahhhhhhhhh! Ignorância É a matriz da acei...