domingo, 2 de outubro de 2011

CHEIRO DE RESEDÁ


Ela vestiu as roupas íntimas e logo depois socou o vestido florido por cima. Não queria olhar no espelho, mas foi. Viu-se, virou e olhou para os pés ainda descalços. Lá fora o som da cidade que se movia era quase perturbador. O mundo não olhou para o espelho. Olhou agora para seu olho esquerdo e já não era mais a mesma de antes. Aquela mulher passada já não estava mais no vestido das florezinhas. Nunca somos quem somos depois de uma roupa, quem dirá agora depois de calçar as sandálias. Enfim, calçou-as, as tiras largas envolveram o calcanhar avermelhado. Olhou para os pés. Esticou novamente o olho de soslaio ao espelho emoldurado de madeira fininha e imperfeita, empurrou o cabelo para trás e não mais reconheceu aquele rosto. O espelho torto e mal acabado era traiçoeiro na imagem que refletia. Guardava sua alma e seu desejo, aquele espelho, refletia, aquele espelho. Nas mãos branquelas que puxavam os cabelos estava o elástico que dolorosamente apertou o maço cabeludo num feixe negro. Pegou o perfume de resedá, colocou duas gotas de cada lado do pescoço. Não sentia o olor, não via o cheiro no espelho. Não olhou mais nada. Caminhou em círculos até achar a bolsa quase cheia demais e tão desproporcional ao corpo ridiculamente florido ao exagero. Respirou o ar quente do quarto abafado, guardado dos odores da noite mal dormida. Fechou o barulho do mundo lá de fora que a janela insistia em tocar. Saiu.

Quem sai agora para esse mundo é outra pessoa.

Nenhum comentário:

DOIS AXIOMAS RALÉS

  AXIOMA AMOROSO Entender o outro É respeito Aceitar o outro: amor.   AXIOMA REVOLTO Ahhhhhhhhh! Ignorância É a matriz da acei...